“Paixonite Aguda” por Angola!
O meu nome é Patrícia, tenho 33 anos, sou Técnica Massagem Terapêutica de Recuperação e já fui carinhosamente apelidada, por um sacerdote com quem trabalhei, como “maluca de Jesus”. Acho que, desde que me lembro, tenho uma espécie de antena conectada no modo servir… um processo com algumas “distracções” pelo meio.
O sentir-me útil, estender a mão e segurar, amparar e encorajar fazem parte de mim e não consigo fazer nenhuma destas coisas que referi sem algo fundamental: o Amor.
O Amor é o que nos move e é a ponte sólida para chegarmos ao outro. Contudo, algo muda em nós quando nos apercebemos que esse amor se torna maior se o sentirmos em profundidade, se nos permitirmos experimentá-lo e vivê-lo com toda a liberdade, simplicidade e em plena consciência no amor de Deus. Viver e partilhar a nossa vida com Deus pode parecer aos olhos de muitos uma tarefa um tanto ou quanto utópica e árdua, mas se no nosso dia-a-dia olharmos para aquele que precisa de um gesto, uma palavra ou um conforto, e pudermos ver e sentir o rosto de Deus na profundidade de um olhar, então tudo faz sentido e ganha uma outra expressão.
O verdadeiro grito de liberdade de expressão deste Amor deu-se em mim no momento em que resolvi sair da minha zona de conforto, deixar tudo e partir, utilizando o tempo das minhas férias laborais de forma diferente do usual.
Angola foi o meu destino. A minha estadia era inicialmente de um mês mas ao fim da segunda semana eu dizia que queria voltar, que me identificava com aquela terra, com aquela gente e que sentia que a minha vida ou parte dela passava por ali.
Fui acolhida pelos Salesianos de Dom Bosco em Luanda e depois fui enviada para um Bairro que se chama Lixeira, um musseque (favela) situado no Sambizanga, no coração de Luanda. Basicamente, é um aglomerado de casas e tectos (a grande maioria de chapa) e a sua extensão parece não ter fim aos olhos de quem vem de fora. É, também, uma das zonas da cidade com vista privilegiada para a Baía e Ilha de Luanda.
Durante esse mês fotografei algumas casas Salesianas de Angola e esse trabalho permitiu-me viajar, conviver e trabalhar com a população local, especialmente com os mais jovens em actividades de grupo, encontros, reuniões nacionais e de catequese. O improviso e a disponibilidade faziam parte do dia-a-dia e, claro está, não podia faltar o ingrediente fundamental: a alegria! Todo este trabalho foi desenvolvido não só no grande centro urbano de Luanda como também se estendeu até algumas aldeias mais pobres e isoladas do interior.
Sempre fui muito bem recebida e várias vezes me questionei como é que nos dias de hoje com a sociedade e a tecnologia que possuímos, são tantas as dificuldades que podemos encontrar em lugares como aqueles que eu visitei em Angola. Emociona-me saber que apesar de todos termos teoricamente os mesmos direitos, na prática isso não se sucede. Face a tantas adversidades, as questões dentro de mim eram imensas e cheguei mesmo a perguntar “Onde estás tu Meu Deus?!” perante os cenários com que me deparei. Apesar de tudo isto, foi muito fácil encontrá-Lo nas gentes com quem me cruzava, nos sítios que calcorreava. Aceitar o que estava diante de mim é que nem sempre foi fácil.
Regressei a Portugal – bom, apenas o meu corpo já que a minha alma estava agarrada à Terra Vermelha. Senti como se tivesse sido uma viagem sem regresso e achei que tudo só fazia sentido se eu voltasse não por um mês, mas sim por um ano.
Despedi-me daquele que foi o meu trabalho efectivo de nove anos na fotografia e deixei em standby as massagens terapêuticas. Abracei a minha família, que sofreu com a minha decisão, e voei para outro Continente em Janeiro de 2010.
Para a grande maioria daqueles que privam comigo foi pura insanidade mental, para outros um acto de coragem e altruísmo e para outros tantos um acto de cobardia e de negligência para com a minha vida.
Para mim foi aceitar um convite que o Senhor me fez e confiar…Confiar e Confiar-Lhe tudo.
Parti sem expectativas, sem saber se iria para o mesmo local ou o que me esperava nesta nova experiência. Na minha bagagem levava apenas disposição, vontade e a fé de que tudo ia correr bem.
Assim, no início de 2011 regressei a Luanda, desta vez com morada fixa no Bairro da Lixeira na Paróquia de São José de Nazaré, sendo novamente acolhida pela Comunidade Salesiana. Aí habitei numa casa construída para acolher os voluntários, situada no pátio da Escola Dom Bosco (uma das maiores escolas) de Luanda, parte integrante da comunidade Salesiana desta paróquia.
Durante esse ano trabalhei na área da saúde num Posto de Saúde chamado Cefas com as Irmãs Franciscanas de São José e as Irmãs Sacramentinas. Fiz de tudo um pouco: arquivos, transporte e encaminhamento de pacientes, atendimento e pesagem, massagem, reabilitação e enfermagem. Neste local testemunhei, vivi e lidei com situações de extremos, com a morte e a vida, o sofrimento e a alegria, a tranquilidade e a aceitação, a doença e a saúde.
Vi gente a morrer e a nascer, gente a recuperar, testemunhei paciência e impaciência, aprendi a relativizar muita coisa mas não a ignorar - jamais poderia ficar indiferente a um lugar assim. Descobri que todos somos seres de acção e que “alguém tem de fazer”, alguém tem de agir no imediato. Muitas vezes caímos na vaidade de acharmos que somos nós mas não somos nós… é Deus que age através de nós. O impossível torna-se possível, o nada um todo. Deus dá sempre uma resposta, é nossa função estarmos despertos e atentos para a podermos ver. A aceitação ainda que por vezes irreverente teve de fazer parte de mim. Foi necessário aceitar a morte e a impotência da doença, tendo eu ficado doente algumas vezes e por duas vezes com maior gravidade. Em todas estas situações, tentei sempre ter a consciência que tinha dado o melhor de mim, o que facilitava ligeiramente o processo de aceitação.
Paralelamente à minha actividade no Posto, dei aulas de Educação Religiosa na escola da comunidade. Tinha 3 turmas, cada uma com 50 alunos e com idades que variavam entre os 16 e os 64 anos. Confesso que tive um início caótico mas a experiência foi bastante positiva.
Apesar de leccionar numa escola católica as minhas turmas tinham uma diversidade religiosa e cultural abismal. Perante este contexto, pareceu-me importante que aqueles alunos expressassem e partilhassem a sua educação e religião. Como tal, pedia-lhes sempre que escrevessem ou falassem deles ou de alguém que lhes era importante ou que servisse de referência. Esta abertura permitiu que tanto famílias como alunos saíssem pelo Bairro e em alguns casos se deslocassem até outros bairros e aldeias em missão independentemente da sua crença ou religião. Estas actividades decorriam sempre com a orientação e presença de pelo menos um dos elementos do grupo de professores de Educação Religiosa e aconteciam, esporadicamente, ao fim de semana.
Fazia parte do meu leque de actividades o acompanhamento de alguns meninos de Rua, que eram posteriormente acolhidos numa casa na paróquia para aí fazerem a reabilitação e a sua inserção social. Quando conseguíamos libertar a criança da dependência química e contactar com sucesso as suas famílias, era uma alegria.
Era também minha função a gestão da casa dos voluntários. Eu era responsável pelo acolhimento e acompanhamento de todos os que moravam e passavam por ali.
Mesmo com todas estas actividades, o meu dia só tinha verdadeiro sentido com a Eucaristia e o Terço diário, que eram momentos de intimidade que me faziam sentir mais perto Dele e a altura em que tomava consciência e olhava com outra maturidade os assuntos que abordaram o meu dia. Era o silêncio e o encontro diário que pelos quais a minha alma ansiava.
Foi um ano tão intenso que senti que passara a correr. Regressei, então, de férias a Portugal – sim, férias porque era desde logo minha ideia regressar. Na bagagem levava muitas histórias, sentia-me diferente, mais alegre, bem-disposta, mais solta, mais prática e objectiva, mais tolerante. Acho que tudo isto são sintomas de “Paixonite Aguda” por Angola. Eu estava completamente apaixonada pelo trabalho, pelo País e pela gente. Foi um ano de acordar e deitar com música do Musseque. Depois de 1 mês e meio com a família e os amigos voltei com a intenção de trabalhar por mais um ano.
Quando cheguei ocupei os “meus lugares cativos no posto” e mais alguns extras: comecei a ajudar no atendimento na Farmácia do posto, na preparação e distribuição de medicamentos e a participar em campanhas de vacinação e de combate e prevenção contra a malária na primeira infância, um trabalho em parceria com o Governo de Angola e a Unicef. Nessas campanhas, dei formação a vários grupos e movimentos católicos e terminada a formação, esses grupos saíam para visitar as casas, as famílias, os doentes, transmitindo todo o conhecimento adquirido nas palestras de formação e prevenção. Visto ter um trabalho mais exigente e com uma maior carga horária no Posto de Saúde, não lecionei nesse ano. Mas foi fantástico trabalhar com os mais velhos dos grupos católicos; a humildade e a simplicidade proporcionaram uma troca de conhecimentos muito mais profunda e benéfica para todos.
Sempre que era necessário continuava a sair com a equipa de rua ao encontro dos meninos de rua, para fazermos actividades com eles e tentarmos informar-nos melhor sobre a situação destas crianças. Era regra entre nós não impormos a nossa presença, fazendo apenas o convite às crianças para participar nas nossas actividades e, mais tarde, a conhecer o centro.
Era uma luta constante a que fazíamos com estes rapazes para a sua recuperação. Umas vezes éramos bem-sucedidos, outras nem por isso, mas sabíamos que não podíamos desmotivar nem desistir.
Nesse mesmo ano fui convidada a fazer a seleção fotográfica para o “Youcat” africano e a registar e arquivar as fotos da Congregação. Este trabalho permitiu que eu conhecesse mais de perto a cultura, os costumes e a tradição e me apercebesse de como a presença da Igreja foi e é importante para a população em geral desde o tempo da guerra. Importante pela saúde, alfabetização, educação mas sobretudo pela componente humana e pelo acompanhamento espiritual.
Só crescemos verdadeiramente se acreditarmos em nós e nas nossas capacidades e creio que a missão me ajudou a desenvolver enquanto pessoa, enquanto católica a minha sensibilidade e componente humana. Sinto que estou mais atenta e mais sensível à necessidade do outro, que a minha vida cada vez mais se resume ao essencial.
Não concluí o ano de missão, tendo que regressar mais cedo por motivos de saúde. Este regresso forçado fez-me repensar em muitas coisas e aprendi que era importante conhecermos os nossos limites, no meu caso focando e reconhecendo a fragilidade da minha saúde.
Retornei a Portugal num turbilhão de emoções e com a sensação de que muito ficou por fazer e com a esperança de um dia voltar, sabendo que não vou ser a mesma Patrícia que um dia pisou Angola, mas com uma vontade ainda mais reforçada de servir o meu irmão.
Sinto que deixei a Terra Vermelha, mas todos aqueles que passaram por mim ou que visitei permanecem comigo num cantinho que é só deles. Todos eles me transformaram, humanizaram, ajudaram a construir a pessoa que sou hoje.
Gosto de acreditar que deixei o mundo de alguém melhor. Espero que cada um deles possa ter sentido que mudou o meu mundo!
Ser humano é ser divino!
Patrícia Santiago
